terça-feira, novembro 16, 2004

J. G. Ballard




J. G. Ballard deu há umas semanas uma entrevista ao Público que achei fascinante. Ballard, o autor de entre outros livros do Império do Sol, tem uma visão, no minimo provocante sobre uma série de temas.

"Os seres humanos têm um grande apetite por violência. Estão muito interessados na dor e na morte. Talvez por muito boas razões biológicas. O "Homo sapiens" emergiu há uns cem mil anos; a linguagem há 50 mil; a primeira cidade, no Iraque, foi construída há dez mil anos. E nos últimos 50 anos vivemos numa sociedade completamente nova, altamente organizada e consumista, que pôs os nossos cérebros a apodrecer. "

Ou sobre a violência e as leis e a falta de liberdade nas sociedades democráticas:

"P. Não é bom ter leis razoáveis?
R. É precisamente esse o problema. As sociedades ocidentais são muito conformistas. Estão cheias de convenções. A vida na América, na Inglaterra, Itália ou Portugal é muito idêntica. A legislação é muito boa, muito esclarecida. Todos temos de mandar os nossos filhos para a escola, dar-lhes vacinas... tratar bem as nossas esposas, conduzir a 60 km/hora, parar no semáforo vermelho...
P. São convenções que aceitamos livremente, como disse.
R. É verdade. Mas semiconscientemente vamos descobrindo que não temos liberdade. E inconscientemente precisamos de protestar. Porque já não temos oportunidade de tomar decisões morais. O bem e o mal foram roubados aos seres humanos pela primeira vez.
P. Até aqui éramos donos do bem e do mal porque vivíamos em sociedades injustas?
R. Injustas, não democráticas, repressivas. Agora temos sociedades governadas pelos princípios mais simpáticos. E estamos sufocados, não podemos respirar. Não nos é permitido fazer julgamentos morais sobre nada. A sociedade fá-los por nós. A violência sem sentido surge como a única forma de assegurarmos a nossa liberdade. Há uma necessidade desesperada, no nosso mundo, de fazermos alguma coisa que tenha alguma espécie de sentido. E as únicas coisas que parecem ter algum sentido são os actos sem sentido.
P. Faz um certo sentido...
R. Se eu achar, por exemplo, que Tony Blair levou o nosso país para uma guerra estúpida, no Iraque, e por isso decidir matá-lo - o que não seria difícil, na realidade, se estiver preparado para ser apanhado. Se o fizer, o que terei conseguido? Nada. Mas se eu for na rua e matar a primeira pessoa que me aparecer, num acto completamente sem sentido mas ao mesmo tempo misterioso... isso deixará as pessoas a pensar.
P. Assassinar Blair seria lógico e portanto sem consequências...
R. O círculo fica completo, as pessoas partem para outra coisa, não pensam mais no assunto. "


Ballard, também fala de Bush e da cruzada antiterrorista:

"P. Bush compete em psicopatologia com Bin Laden?
R. O discurso dos neoconservadores americanos, Rumsfeld, Wolfowitz, sobre "fazer do mundo um lugar melhor" através da guerra está nas fronteiras da psicopatologia. Os ideólogos nazis, quando falavam da Rússia Soviética e dos judeus, mostravam o mesmo tipo de raciocínio psicopático. Mas a psicopatia é muito atraente. Dá todas as respostas de que precisamos.
P. A psicopatia, como a violência sem sentido, é um caminho para a liberdade?
R. Exactamente. Uma vez engolida a loucura básica, pode fazer-se qualquer coisa. Nos jornais ingleses já se está a criar o terreno para um ataque ao Irão. Só se fala do seu programa nuclear. Exactamente o mesmo caminho que seguiram com Saddam e as armas de destruição maciça.
P. As pessoas acreditam em tudo porque querem acreditar? Mesmo que não seja racional?
R. Sim. É até melhor que não seja racional."


Ou do futuro, tal como o antecipa:

"P. Estará para nascer mais algum grande projecto utópico?
R. Eu vejo a possibilidade de o consumismo, para sobreviver, sofrer uma mutação. Transformar-se numa espécie de versão "soft" de fascismo. Há muitas similitudes. Os princípios psicológicos que lhe subjazem são os mesmos.
P. O consumismo não pressupõe a liberdade individual?
R. Não. É um tipo de autoritarismo, porque é um sistema de promessas. Compre isto e terá a felicidade. É uma promessa ideológica. A publicidade é um meio de dominar as nossas mentes, de forma autoritária, prepotente, sem argumentos racionais. As pessoas sabem isso e aceitam, porque gostam de obedecer. "




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