Bem vistas as coisas, só há um argumento a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O casamento é a oficialização voluntária de uma vida em comum. Se duas pessoas do mesmo sexo querem oficializar a sua comunhão de vida - comunhão de mesa, leito e habitação, como se diz - então devem casar. E negar-lho seria negar a cidadania, que passa pela oficialização do que cabe oficializar, ou seria negar que aquele projecto de comunhão de vida fosse um projecto de comunhão de vida…
De resto, os defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo só têm de preocupar-se em rebater os argumentos contrários. Em contrário, todavia, também só há um argumento. É o argumento de que as regras do casamento são regras centrais da vida social e de que há o “perigo” de que uma alteração como esta tenha “consequências imprevistas”. Tal “prudência conservadora” tem, contudo, o defeito de conduzir à completa inércia social, se levada a sério. Na verdade, é preciso puxar muito pela imaginação para encontrar algum possível efeito negativo da abertura do casamento aos homossexuais. Mas não deve faltar quem consiga, pois ainda há poucos dias se sugeria num jornal nacional - sem rir - que a facilitação do divórcio faria aumentar a criminalidade violenta…
Contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo não há, pois, argumentos. O que há é muita treta, para usar o termo que se elevou ao léxico da filosofia pela pena de Harry Frankfurt. Podemos ler a cada dia treta atrás de treta contra a igualdade no acesso ao casamento. A mais comum é a treta da poligamia. “Se as coisas são assim tão simples”, diz quem não simpatiza com homossexuais, “por que não hei-de eu poder casar com cinco pessoas?” Não há nada que responder a isto, que é desconversar. Todos conhecem bem ou deviam conhecer as razões contra a poligamia, que levaram países de maioria muçulmana como a Tunísia ou a Turquia a proibi-la e que não têm nada que ver com o casamento entre homossexuais. A intenção da treta não é discutir razões, é mudar de conversa, fazer ruído, a ver se a confusão nos deixa na mesma.
Outra treta popular contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo é a de que o casamento é anterior ao Estado” e, portanto, o Estado não poderia “alterar as suas regras”. Esta linda treta é polivalente: vale contra o casamento civil, para quem ainda estiver no séc. XIX, contra o divórcio, contra a despenalização da bigamia e contra todas as alterações importantes ao direito matrimonial. E é um tipo de treta bem conhecido: chama-se non sequitur. Ser o casamento anterior ou posterior ao Estado não tem nada que ver com a possibilidade ou não de alterarmos as suas regras. Além do non sequitur, esta treta é um jogo de palavras, uma logomaquia: na verdade, o que é anterior ao Estado é a vida em comum, o “casamento” num sentido bem diferente do que estamos a discutir. Ou o “casamento” no sentido de venda de mulheres férteis a futuros amos. Isso, sim, é anterior ao Estado. Pelo contrário, o casamento enquanto instituição decorrente de um acordo público de vida em comum feito por adultos livres perante um oficial, sem cuja presença não há casamento, é, no máximo, do séc. XVI, após o Concílio de Trento, e foi promovido pelos Estados modernos. O casamento que nos interessa, finalmente, é o casamento civil, que tem século e meio e é mesmo uma criação do Estado, de modo a ser acessível a todos independentemente de convicções religiosas.
Uma terceira treta difundida contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo é a treta peregrina de que os seus defensores visariam “atacar a família”. O alargamento do matrimónio seria apenas um pretexto numa malévola campanha “contra a família”. Isto é treta, evidentemente, porque nenhum sentido útil se consegue extrair de tal “tese”. Querer alargar o acesso ao casamento não é defender que as pessoas vivam sozinhas sem conhecer pais e filhos. Não é defender que pais, filhos e cônjuges deixem de ter direitos e obrigações uns para com os outros. Não é sequer defender que as famílias mais conservadoras e mais apostadas na sua distinção deixem de ser conservadoras e distintas. O casamento entre espanhóis do mesmo sexo não alterou o casamento dos reis de Espanha. A igualdade no casamento significa apenas que as famílias compostas por um casal homossexual têm de ter o mesmo reconhecimento oficial e a mesma dignidade de cidadania que as restantes. Isto não é atacar “a família”, é defender todas as famílias, mesmo aquelas que certa “tradição” sempre perseguiu». Jurista. Co-autor de Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo (Almedina, 2008)